As garças
Por Paulo Santos
Todas as tardes, mansamente, precedendo a noite, o
crepúsculo traz nos dias de sol a gama de cores no céu, que varia do dourado ao
púrpura. As copas das árvores mais altas formam silhuetas que parecem uma
multidão esperando a abertura do espetáculo. Também sou multidão e estou à
espera. A princípio, timidamente, elas começam a surgir em bandos de três,
quatro, trinta, quarenta, cinquenta, em duplas ou solitárias, voando baixo num
reconhecimento prévio. Há muitas árvores ao redor do lago, mas elas sabem que
apenas uma ou duas dentre todas será seu abrigo em todas as noites da sua
estação. São pequenas as garças; alvas, graciosas, decididas. Há um ritual a
ser cumprido. Algumas rodeiam a árvore destino e pousam em outras ao redor.
Parecem aguardar um sinal e quando ele vem, Deus sabe de onde, elas alçam breve
voo e se instalam, após pequeno alarido, nos seus galhos preferidos. Outras
dirigem-se diretamente à árvore, mas, sem a devida permissão, têm de voar outra
vez, pousar próximo e ficar esperando ordem para instalação. Quando a ouvem,
precipitam-se à procura do seu lugar e, após ligeira confraternização,
aquietam-se. Esperamos pelas retardatárias e, à medida que a noite avança, mais
velozes elas chegam, nos mesmos moldes de conluio ou solidão. Obedecem ao mesmo
ritual e esperam pela escuridão. Vejo, invejo-as e teço milhares de perguntas.
Por onde andaram? Que distância percorreram? Quem é o líder? Como foi
escolhido? Como encontram o caminho de volta? No trajeto, presenciaram algum
ato de vileza cometido por algum humano trágico? Viram paisagens incólumes à
ação do homem? Comove-me pensar em sua jornada, feita sem discussões ou planos
prévios, com absoluta convicção do que deve e não pode ser feito. Da
inevitabilidade do amanhecer/anoitecer, com chuva ou sol, e do caminho a ser
percorrido. Nós nunca teremos isto! A noite chega e com ela as derradeiras aves
que ainda precisam executar o ritual diário. Como que coberta pela neve, a
enorme árvore se funde, pálida mancha, ao negror da noite. Sinto no peito, sem saber
explicar, a dor da saudade. Anseio pelos lugares onde nunca estive, dos montes
e vales que nunca transpus, das límpidas cascatas onde não saciei minha sede,
das cidades e civilizações cuja linguagem não aprendi. Que saudade daquilo que
não vi, vivi ou venci! Recolho-me à insignificância da vida que não me permite
vislumbrar o que está além do horizonte e que torna menor e mais triste o meu
mundo. Se elas podem voar, por que não eu?
*Paulo Santos publicou seu primeiro livro intitulado "O Caminho de um Só", um eBook Kindle - livro digital na plataforma da Amazon no final de abril. O segundo livro do escritor será lançado, em breve, para o deleite de seus leitores.
Quer saber mais:
www.correiodopapagaio.com.br/sao_lourenco/noticias/quem-c-o-escritor-residente-em-so-loureno-que-viralizou-nas-redes-sociais